Como jogos passaram de produtos para serviços?

As últimas semanas viram uma explosão de notícias sobre o movimento Stop Killing Games, que nada mais é que um grupo de consumidores realmente cansado com o estado atual da indústria de jogos.

Especificamente o fato de que jogadores precisam estar sempre online para que os servidores sejam fechados e os jogos fiquem injogáveis.

Se nos anos 2000 jogos eram produtos, hoje a maioria é antes um serviço. E tudo começou com jogos tendo um modo multiplayer, o que fez as empresas criarem serviços para conexão entre os jogadores.

Disso, as empresas passaram para oferecer títulos online com expansões, misturando produto e serviço. Porém, como e por que a mudança aconteceu?

O nome diz tudo

Créditos: Walpapperflare.

Conforme Jacob Navok em uma thread que publicou no X, quinze anos atrás, os relatórios anuais da Square Enix continham várias vezes a palavra “produto”. O termo é uma tradução aproximada, pois os documentos em japonês continham コンテンツ (Kontentsu) e, em inglês, a tradução é “content”.

Para explicar, em 2002, Warcraft III seria classificado um “produto”. Já jogos como Esquadrão Suicida: Mate a Liga da Justiça são vendidos como “serviço”. O que não significa que não haja bons exemplos de títulos assim e Helldivers 2 é um caso.

Créditos: Walpapperflare.

Porém, a diferença de palavras diz tudo: Warcraft III foi vendido como um jogo completo e um produto completo. Ele foi atualizado e recebeu melhorias, mas qualquer jogador que pegue um CD do jogo e instale o jogo conseguirá jogá-lo.

A partir do momento que um jogo precisa estar sempre online para rodar, ainda que seja para evitar a pirataria, começa a ficar difícil de dizer que se trata de um produto. Na prática, o jogador compra um “serviço”: uma licença para jogar enquanto a empresa mantiver os servidores ativos.

Ou, enquanto ele estiver conectado à internet.

E o pior é mídias físicas exigirem o download do jogo, significando que as mídias físicas não vem mais com o jogo, mas com uma chave de ativação.

Escassez

Créditos: Walpapperflare.

A principal diferença que muitos podem não compreender é que os jogos enquanto “produto” fazem a indústria se definir pela escassez. Ou seja, o jogador consumia um jogo e ia para o próximo.

Se tomar o modelo da Paradox, o “próximo jogo” é a próxima expansão.

E isso era aplicado mesmo a MMOs, por isso World of Warcraft manteve o fluxo constante de expansões. O mesmo vale para outros títulos menores e Final Fantasy XIV ainda usa desse expediente.

Acima de tudo, as empresas precisavam lançar um produto novo para lucrar com as vendas desse produto. Por isso havia tantas disputas por uma data para a venda. E o lançamento de filmes no cinema ainda segue um padrão similar, mas o streaming não segue necessariamente essa lógica.

Créditos: Divulgação/Xbox

E é evidente que uma parte da indústria de jogos ainda permanece com o antigo modelo. Claramente fala-se de jogos indies, mas mesmo títulos indies estão ficando mais e mais reféns de planos de assinatura como o GamePass.

Em outras palavras, os jogos indies estão virando parte de um serviço maior.

O Futuro era a Rede

Créditos: Blizzard.

Após os anos 2000 e com a ascensão do acesso à internet, o negócio de jogos começou a migrar para redes. Porém, não se trata de necessariamente jogos online (sejam partidas multiplayer ou MMOs). A Battlenet foi lançada em 1996 e o serviço já ajudou a construir uma rede.

Fala-se em “rede” no sentido da Lei de Metcalfe, segundo o qual o valor de uma rede de telecomunicações é proporcional ao quadrado do número de usuários conectados. Em outras palavras, quanto mais pessoas ou dispositivos estiverem conectados a uma rede, maior será o seu valor.

Traduzindo para o mundo dos jogos, cada jogador conectado é mais valioso que cada CD de jogo vendido. Ainda que, em ambos os casos, o jogador jogue sozinho.

Consequências Práticas

Créditos: Gemini/Reprodução.

Aqui começa o grande problema para os usuários: jogos deixaram de ser “produtos” porque as empresas precisavam de uma forma de mensurar quantos estavam conectados à rede da empresa. Por isso, passaram a ser “serviços”.

A grande diferença manifestou-se nas contas, pois um CD podia ser usado para instalar o mesmo jogo em vários computadores para vários usuários jogarem (até em multiplayer, desde que usassem outros serviços). Porém, no caso de contas, só um usuário pode usar a conta por vez.

E isso é válido ainda que o objetivo fosse jogar jogos diferentes.

Créditos: Walpapperflare.

E não há porque negar que a expansão das redes de wi-fi, dos celulares e dos jogos mobile contribuiu para que as empresas percebessem o negócio. Isso sem falar em como os usuários começaram a se acostumar com novas práticas de mercado.

Porém, mesmo Angri Birds teve mais de um título. O que mostra que a transição não foi instantânea, mas um processo gradual.

E mais que um modelo de lançamento, é um modelo de negócio diferente. Ou seja, a forma como se consegue dinheiro é diferente e o valor de um jogo é mais que o número de vendas. Importa mais o número de conectados ao jogo.

De conteúdo para plataforma

Créditos: Walpapperflare.

Muitos jogadores que entraram nesse novo modelo começaram com Minecraft. O título começou como um jogo tradicional, mas evoluiu para uma plataforma criativa, ainda mais considerando os mods.

O resultado é que as novas gerações, como de jogadores de Roblox, não tem noção de jogos como peças individuais de conteúdo. Roblox é uma plataforma, e nessa plataforma há um número infinito de experiências. E não há necessidade de sair da plataforma.

O modelo de plataforma que começou com Minecraft se expandiu a tal ponto que o mesmo é copiado (de alguma forma) em jogos como Fortnite, Call of Duty e GTA Online. Com as plataformas dominando o tempo gasto, não sobra muito para jogos tradicionais como Assassin’s Creed: Shadows.

Créditos: Walpapperflare.

A queda no número de jogadores em Monster Hunter Wilds também se relaciona com essa dinâmica. O jogo logo ficou sem conteúdo para alguns jogadores que possuem mais tempo livre. Porém, outros títulos possuem atualizações semanais.

World of Tanks, por exemplo, trouxe um evento de 11 dias com Duke Nukem e Lara Croft. O conteúdo passa, a plataforma permanecesse.

Difícil de competir

Walpapperflare.

Com uma base de jogadores maior e, portanto, uma base de receita maior, Fortnite pode gastar mais do que 99% dos desenvolvedores no mercado. E ele não precisa começar do zero, pode construir em cima do que já possui.

Mais que isso, é difícil imaginar que o jogo deixe de ser jogado ainda que um conteúdo novo não seja de agrado dos jogadores. Eles só irão jogar o conteúdo antigo.

E esse é o ponto da transição: em termos de negócio, jogos são mais uma mídia social que podem lançar novas experiencias, produtos, para os jogadores. Numa analogia, o Gamepass é a plataforma, o serviço, e os jogos indies são os produtos.

Porém, o problema não para aí. Pois mesmo as grandes empresas estão com dificuldades para competir e lançar novos produtos. Em parte porque não possuem plataforma.

Cruzando o Rubicão

Créditos: Divulgação/Firewalk Studios

Antes de 2024, uma situação como de Concord nunca havia ocorrido. Foram US$ 400 milhões e oito anos de vidas perdidas para sempre em duas semanas. O jogo gerou zero de receita, pois todas as vendas foram reembolsadas.

Isso é impressionante.

No caso de Duke Nukem Forever não houve reembolso, por maior que tenha sido o fracasso.

Créditos: Reprodução.

Junho de 2025 foi, de fato, um mês crítico para a indústria de jogos. Foi quando a indústria cruzou o Rubicão e entrou, de fato, numa nova era.

Quase US$ 1 bilhão foi investido nos seguintes jogos: US$ 400 milhões para Mindseye, US$ 100 milhões para Splitgate 2, centenas de milhões a mais para Marathon e dezenas de milhões a mais para FBC: Firebreak.

Quatro títulos que, em junho, anunciaram que seus lançamentos ou betas não saíram como planejado.

O novo dilema

Créditos: Walpapperflare.

Jogadores satisfeitos com Roblox continuarão com o jogo. Assim como geração de crianças do YouTube continua a assistir ao YouTube. Esse efeito de plataforma, a lei de Metcalfe, é o futuro dos jogos e continuará a crescer.

Para se ter uma ideia, as vendas de Death Stranding 2 mal ultrapassaram as de Clair Obscur nos seus primeiros três dias. E isso desconsiderando que Clair Obscure estava gratuito no Gamepass no lançamento e cresceu muito mais rápido logo depois devido ao bom boca a boca.

Porém, na prática, muitos investidores já entendem que um dólar gasto em Death Stranding 2 seria melhor investido tentando fazer um Fortnite. E é por isso que a Sony continuará tentando fazer algo com a aquisição da Bungie.

Créditos: Reprodução.

Roblox e Epic têm suas plataformas. A Sony precisa da própria, ou ainda estará no ramo de produtos em uma era de negócios de rede. A Nintendo pode ficar feliz em permanecer para sempre como um negócio de produtos graças ao Switch que, na prática, é o negócio de rede dela.

Para se entender a questão, é possível trazer outro caso. Ninguém vê Strauss Zelnick, CEO da T2, falando sobre cortar custos com GTA6 em 75% e substituir trabalhadores por IA. Zelnick precisa que GTA6 crie sua própria gravidade e seja um desses títulos recompensados pela Lei de Metcalfe.

GTA6 precisa ser um Fortnite, um Roblox, um GTA Online. Ninguém se importa com os custos porque sabe que os ganhos irão cobrir tudo.

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